O que encontrar nesta página?

Quando pensei em criar o blogger foi para dar vida aos meus escritos, fazê-los participarem da vida das pessoas. O nome se refere as possibilidades de sentido que damos a nossa existência, portanto, mais do que qualquer sentido psicológico eu busco determinados sentidos existenciais nesta aventura inédita que é ser.


segunda-feira, 10 de março de 2014

“FOI TÃO RÁPIDO...”


Esta foi a frase pronunciada por uma criança de aproximadamente 10 anos que assistia as apresentações de Maracatu, Caboclinho e Boi no carnaval de Surubim, pobre criança, lhe tiraram o doce no momento em que ele ficava mais saboroso.
É um absurdo como a gestão municipal se refere a cultura popular e ainda nomeia o “Desfile das Virgens” de Carnaval Multicultural. O que é Multiculturalidade? Tratar os grupos de cultura popular como um bando de “Zé Ninguém” que desfila numa avenida repleta de reboques que competiam pra ver qual alcançava o maior volume de decibéis ou escoltá-los com um Trio Elétrico de swingueira e axé music? Não me atreveria a falar em carnaval multicultural. Ao chegar no palco da usina a resistente expressão popular nem sequer teve direito a ser vista mais de cima. A apresentação foi no chão mesmo, em um espaço rodeado por uma grade que mais parecia uma gaiola que não precisa ser fechada em cima já que os homens não voam, nem quando usam penas ou estão folclorizados.
O destaque vai para o apresentador da festa que ao ver o Trio Elétrico colado com os blocos populares falava ao microfone: “Por favor! Mais respeito a cultura popular, dêem uma parada”. E quando os bois e caboclinhos começaram a se apresentar na “gaiola” ele emendava: “Vamos ser rápidos pessoal”, “só três minutos”, “os trios precisam descer, não temos tempo”. – Coitada da criancinha que disse: “foi tão rápido”. É pequena encantada com a magia popular, também percebi que foi tão rápido.
Isso é carnaval multicultural? Uma parada de três minutos e pressionada? Era como se dissessem: Vão embora logo que a gente quer se embriagar e escutar música chula. Uma falta de respeito, uma desvalorização, uma indecência com as expressões populares que partiu daqueles que mais deveriam incentivar as raízes que sustentam a ancestralidade humana. A cultura popular parte da simplicidade mesmo, do que é mais ontológico, da vida em comunidade e do compartilhar das experiências. Ela só precisa ter crianças como aquela, só precisa ter rostos hipnotizados e impressionados com a desenvoltura dos caboclos, com as cores e os personagens do boi, de olhos fixos tentando desvendar o mistério desconhecido de uma estória que ali se manifestava.
A secretaria de cultura deveria ter mais respeito e atenção as manifestações populares. Cultura popular não é coisa para ser exibida sem valor – e visibilidade – para discurso político de palanque.

Éllcio Ricardo
Psicólogo - 10/03/2014

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Um poema para a liberdade

Voa meu amor que voar te faz
Te embeleza, te refaz 
Sobre as nuvens, sem fronteiras
Voos altos e velozes
Rasantes bem de perto
O que vale é que estas acima do chão
Se vais de avião?
Que importa! Não precisas deles sempre
As estrelas da terra sempre visitam suas amigas penduradas no céu
Estas sim são sofridas
Elas não voam, não sentem o vento
Você é a candura da brisa, que toca o orvalho
Voa mais e mais, porque é de sonho que a vida foi feita
Sonha muito, sonha tão intensamente para me encontrares
Porque estarei no teu sonho
Voa e volta ao chão quando eu aqui estiver
Voa comigo quando as nuvens nos convidarem
Voa que é no sonho que nasce a liberdade
E quando te sentires livre, voa pra mim 
Porque estarei de braços abertos para acolher teu pouso.


Éllcio Ricardo 01.11.13

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

EU E A LOUCURA, UNIDOS PELA LAGARTA.


Hoje fui realizar um trabalho no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, dispositivo de saúde estratégico do modelo de reorientação da Política de Saúde Mental proposto pela Reforma Psiquiátrica. Cabe aos CAPS o acolhimento e a atenção as pessoas com transtornos mentais graves e persistentes.
Após o término do trabalho me deparei com uma cena muito simples, uma lagarta de pêlo subindo no carro, então resolvi devolvê-la ao ambiente que achei que fosse mais apropriado, uma árvore rodeada de grama verde. Se tratava de uma lagarta de fogo verde da família Saturniidae gênero Automeris, bem não sei se estas últimas informações mudam alguma coisa ou são tão importantes assim, o fato é que o único perigo que representam esta relacionado ao contato. Caso alguém toque em suas cerdas pode sofrer queimaduras pela liberação de toxinas. Informação básica passada por um profissional de saúde, hehe.
Voltemos ao caso. Olhei demoradamente para a lagarta antes de deixa-la na árvore, admirando sua beleza. Ela tinha nas costas uns ramos espetados como espinhos, esverdeados, brilhantes. Entre o fascínio e a razão decidi fotografar na tentativa de guardar aquela imagem por mais tempo e poder consultar quando a vida urbana voltasse a consumir minha realidade. Busquei o melhor ângulo, mas a foto não ficou boa e eu expressei num gesto balançando a cabeça. Não sabia eu que estava sendo observado por algumas pessoas companheiras de trabalho. Ao voltar para o grupo recebi logo um, “num disse que este menino tinha problemas você não quer ficar no CAPS não? Porque isso não é normal”. Respirei fundo...
Antes de questionar o conceito de normalidade para esta pessoa, gostaria de pensar: se ela disse isso pra mim, que apenas devolvi uma lagarta ao seu habitat, o que esta profissional não pensa dos sujeitos com esquizofrenia? O que os delírios não despertam nela? Ao me enquadrar como sujeito que precisa de tratamento psiquiátrico apenas porque admirei uma lagarta e tive um gesto de aproximação com o animal ela circunscreve a normalidade dentro de um parâmetro muito estreito ao meu entender. Qual a visão desta profissional com relação às pessoas com sofrimento psíquico? O que é normal? Viver aquilo que todo mundo vive sem questionar os valores e os hábitos que a sociedade impõe? Sem se dar o direito de olhar um animal, pouco comum e de uma beleza tão singular? Pensar como alienados consumistas que só conseguimos nos relacionar com carros, sapatos, roupas e marcas? Fazer dos programas mentais, criados para nos fazer cada vez mais apáticos, o modelo de normalidade? Deveremos permanecer como seres domesticados que nunca aprendemos a questionar a realidade? Ou melhor, a experimentar outras formas de relação com o mundo o com os seres que nos cercam? Será que não estamos suprimindo e limitando nossa capacidade de sonhar nosso sonho interior e estamos apenas reproduzindo o sonho exterior de uma sociedade?
Aprendemos as coisas e reproduzimos sem a mínima capacidade de questionar. Aprendemos a nos comportar, em que acreditar, o que é bom o que é mal, bonito, feio, certo, errado e nunca nos sentimos livres o suficiente para pensar se estas coisas fazem sentido. Simplesmente introjetamos e pronto! Dom Miguel Ruiz no Livro “Os quatro compromissos” afirma que muitas coisas que fazemos não fazem parte nas nossas escolhas, mas nunca paramos para pensar sobre elas, se são nossa realidade ou não, somente vivemos como se isso fosse a única possibilidade. A única possibilidade nesta sociedade é trabalhar - de preferência em algo que dê bastante dinheiro - ter bens materiais, uma família e acumular, ou até mesmo vestir estas roupas que todo mundo usa. Esse processo foi que ele chamou de domestificação do sonho. Não acredito que exista forma de domestificação maior do que o julgamento. Estamos o tempo todo julgando dos outros, aprendemos que existe uma maneira certa de ver e viver e fazemos dos outros objetos da irregularidade, baseados na ideia de que eu sou o padrão de comparação.
Não descobrimos nosso sonho interior e ficamos vagando e aceitando o sonho da sociedade. Não paramos para descobrir nossa verdade. O delírio não seria a livre expressão do sonho que outra pessoa não teve a ousadia de sonhar? O que define que a diferença no modo de sonhar seja aliada ao campo da psicopatologia? Qual a relação entre a admiração da natureza e a patologia mental? Na verdade o que caracteriza a psicopatologia é o estreitamento no modo de pensar e sentir a vida. Não é o delírio que faz a psicopatologia, mas sim o circunscrição da vida ao delírio, é a ideia que circula e não ganha a proporção do sonho, da longitudinalidade.  Patológico é viver sem sentir a vida, sem construir um laço de abertura para a diferença, sem descobrir sua própria verdade.
O que é a loucura senão o modo de viver aquilo que ninguém tem coragem. Vamos provar isso? Você teria a coragem de falar pra todas as pessoas que não concorda com o que elas fazem? Dizer sinceramente que não gosta de uma pessoa sem ter problemas nenhum com isso? Ser congruente o suficiente para fazer aquilo que tem vontade? Quantas vezes queremos fazer algo e pensamos: “o que as pessoas vão pensar”? Tem muita gente olhando? Você comeria pizza com a mão em um restaurante de “granfino” se tivesse vontade? Não você diria: “estas coisas se fazem em casa”. Mas quem disse isso? Nos domesticaram e simplesmente acreditamos nisso, mas nossa vontade é outra. Cabe uma pergunta: porque a loucura inquieta tanto? Porque nos defendemos o tempo todo dos loucos? Excluímos, prendemos, jogamos nos manicômios, matamos, violentamos, discriminamos todas as formas de loucura em todas as épocas. O que ela tem de tão ameaçador? Porque a tememos tanto? Penso que odiamos e afastamos de nós aquilo que não queremos reconhecer em nós próprios. Estar aberto para descobrir nossa verdade pode nos revelar vontades muito loucas, portanto é melhor nos defendermos afastando esta loucura. Temos tanto medo de nos descobrirmos loucos, por termos aceitado aquilo que não queríamos, casado com que não amávamos, estudado medicina (ou qualquer outro curso) sem gostar, apenas porque nossos pais queriam, ficado em casa quando na verdade queríamos sair, calado quando desejávamos mandar a pessoa pra PQP, mas não, precisamos ser educados... Mas isso não é educação, é mediocridade.
É loucura, loucura de não ouvir a voz do coração, a verdade que só nós podemos acessar. O que tememos é reconhecer que vivemos mais loucos do que sãos, que nossas escolhas e nosso projeto de vida são tão domesticados, que poucas vezes paramos para escutar nossa verdade. E a loucura que está em nós precisa ser abafada porque não é conveniente ser assim “anormal”.
 Por fim deixo a frase de Cervantes,“E um dos indícios pelos quais conjecturaram que ele morria foi ter-se transformado com tanta facilidade de louco em são”.
Éllcio Ricardo
30.10.13

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Igreja para homossexuais: invenção, salvação e alteridade

Esta semana fiquei sabendo da existência de uma igreja para homossexuais e o uso de uma bíblia específica que norteia as práticas espirituais no templo de Deus. Verdade ou não, este fato me chamou a atenção. Parei para pensar na capacidade de inventividade humana e o quando este livro, que chamam de sagrado, é fruto desta capacidade. Com todo o respeito que as crenças alheias e as religiões merecem, este notícia reforçou, em mim, a ideia de que este manual de práticas espirituais e matérias não é senão uma invenção muito bem elaborada pela mente humana. Um livro sagrado que contém todos os códigos de conduta para guiar os comportamentos humanos, com isso direcionar as almas para o bom caminho e o encontro com o ser supremo. A salvação. Ah, a salvação! Quem não a quer, tendo em vista a consciência de culta que a todos atormenta. Vivemos no mundo marcado pela separatividade, exclusão-reclusão, inclusão mal sucedida e segregação. Se não conseguimos juntar todos do planeta Terra ao menos trabalhemos em prol das ovelhas desgarradas para que no mundo do além estejamos juntos. Neste mundo sim, cabem todos! Dentre muitas, uma das imbecilidades humanas é não enxergar que a diferença é o que constitui a essência e, dá cor as relações entre os seres carnais. A invenção de uma bíblia para homossexuais não é senão mais um tentativa de inclusão de uma diferença que não esta sendo contemplada e enxergada com olhos de alteridade. Ao mesmo tempo em que os religiosos dizem que não podem adentrar os mistérios de Deus, se acham tão pretensiosos para dizer que, este mesmo Deus, ofereceu a possibilidade de alguns seres de sua criação não fazerem mais parte dela, pois estariam amargando as ácidas dores do inferno. Não percebemos que continuaremos inventando, tantas alternativas, quanto forem precisas para que construamos um mundo em que caiba todos, loucos, cegos, homossexuais, idosos, mulheres, crianças, pretos, brancos, azuis, amarelos e cinzas. A religião, talvez a maior instituição de poder já criada pelo homem, não irá impedir este movimento de luta por um espaço, um lugar de pertencimento, porque somos todos humanos. Porém, este mundo que cabe todos, está sendo construído através da separatividade, da exclusão, das guerras e conflitos, preconceitos e discriminações sem fundamento. Até quando precisaremos inventar, a custa da separação, para nos sentirmos pertencentes a este lugar que é nosso? Até quando precisaremos lutar para garantir a inclusão de todos? Colocar o outro neste processo de pertencimento, com respeito as diferença, não é senão, nos sentirmos pertencentes à Terra. Ela é o único lugar que habitamos e é nela que nos experimentamos, sentimos, choramos, sorrimos, silenciamos e gritamos. Ela aceita a todos e porque insistimos em separar, abominar, condenar, julgar? Dizemos que “coração de mãe sempre cabe mais um” o que é a Terra, senão nossa grande Mãe? Que ela venha e nos abrace, porque cada um será sempre bem vindo. 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Acredito, pretensiosamente, que ainda consigo conservar um pouco no que escrevo.

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente 
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o 
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora 
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário 
do amante exemplar com cem modelos de cartas 
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Por um tempo de implicação racial


Estava certo dia em uma unidade de saúde da família de um determinado bairro da cidade de Vitória de Santo Antão e em conversa pouco formal com outros profissionais, chegamos ao tema da política de cotas que o Brasil vem adotando nos últimos tempos. A pouco, o congresso aprovou as cotas nas universidades para alunos de escola pública, porém o que mais me chamou atenção no diálogo foi o quanto algumas pessoas defendem com tanto ardor seus pontos de vista.
Falamos acerca da política de cotas para negros e eu vi algumas pessoas brancas argumentando que deste modo, podemos estar afirmando que os negros são intelectualmente inferiores ou que, não são capazes de se preparar o suficiente e passar no vestibular. Fechamos os olhos e não conseguimos enxergar o quanto os afrodescendentes foram explorados, marginalizados e excluídos dos meios de acesso a cultura, igualdade de renda, educação e saúde em nosso país.
Apenas para identificar e não imaginarmos que estou falando de algo pouco concreto os dados o Observatório da População Negra, afirmam que, negros na faixa etária entre 35 a 64 anos tem uma renda média de R$ 524,00, enquanto a população total ganha R$ 762,00, a porcentagem de analfabetismo entre os negros é de 13%, este índice cai para 10% na população total. A frequência escolar na idade correta dos negros entre 15 e 17 anos, é de 27% e da população geral, na mesma faixa etária, é de 36%. [1]
Não quero afirmar que a política de cotas seja a solução para os problemas de desigualdade, não sei nem se sou a favor das cotas, tenho pouca leitura e participei de escassas discussões para ter uma opinião definida a este respeito, o que eu sei é que esta política se propõe a reparar a situação e minimizar a desigualdade de acesso ao ensino superior no país.
Gostaria de entrar em outro nível de discussão, a partir de uma pergunta que há muito me inquieta. Como nós, brancos, podemos falar com tanta propriedade sobre o que é certo ou errado com relação as lutas e conquistas civis dos negros em nosso país? Por que se a aprovação das cotas aconteceu não foi por causa do movimento branco que lutou para que isso fosse alcançado, aliás, nem existe este movimento, porque não é preciso. Os brancos e ricos não foram vítimas de nenhuma negligência social historicamente construída, não precisam que movimentos os representem, porque se perpetuou no imaginário coletivo a superioridade dos opressores que tem este perfil.
Sobre o imaginário quero falar do modo com o qual a relação entre negros e brancos acontece, os preconceitos, as discriminações e outras violações de direto que envolvem a ordem subjetiva. Subjetividades construídas a partir da invenção do sangue azul dos nobres, da baixa capacidade de raciocínio e mediocridade de inteligência dos negros e da animalidade contida na melanina. Antigas representações sociais que sobrevivem na modernidade. Não pensem que já conseguimos reparar os danos causados a raça que, juntamente com os índios, mais contribuiu para que a cultura brasileira fosse tão diversa e contagiante. Ritmos e comidas, arte e coragem, dignidade e luta não foram os europeus que nos ensinaram. Atabaques e pandeiro, alfaias e rabeca, heranças incontestes do enriquecimento cultural para todas as classes, credos e cores. Penso que se os brancos inventassem tantas possibilidades de sentir e viver com a construção destes elementos concretos e simbólicos quisessem, talvez, patenteá-los para garantir o usufruto particular em nome de um separativismo ignóbil.
Então me pergunto: será que ser contrario a política de cotas para negros não nos colocaria neste lugar da indiferença sem ao menos considerar toda história sócio política da população negra no Brasil?
Parece-me que a política de cotas ameaça os lugares demarcados das carteiras universitárias que estavam destinadas para os brancos, por antecedência. Talvez este seja o grande medo, perderem o trono que os faculta privilégios de classe, descerem o altar do glamour opressor e se misturarem a popularidade do navio negreiro que queiram ou não continua a navegar.
 A conquista de direitos dos negros implica na divisão de espaços sociais, na legitimação de uma mestiçagem que ainda não reconhecemos como algo que constitui nossa gente. Os ideais de beleza impostos por uma ditadura da chapinha fizeram dos cachos, produtos de segunda categoria gerando a ilusão de pertencimento a uma classe que nunca se identificou com seus oprimidos.
Fiquei imaginando, ao participar de um seminário, no qual o palestrante negro expunha dados sobre acesso à educação, desigualdade de distribuição de renda entre negros e brancos, condições de saúde e moradia da população negra e ao terminar sua fala, no momento que se abriu o espaço para perguntas, a plateia, em sua esmagadora maioria branca, ficou muda, não tinha o que perguntar ou contribuir. Depois de um tempo pessoas negras levantaram e fizeram suas observações. De imediato me vem duas impressões, uma mais preocupante do que outra; a primeira é que as pessoas não entenderam o que foi dito ou a dimensão do que foi exposto; a segunda, e mais grave, é que os brancos continuam indiferentes ao discurso emergencial e eloquente da negritude.
Uma pessoa citou o exemplo do ministro do STJ – Tribunal Superior de Justiça, Joaquim Barbosa, que é negro e conseguiu se destacar ocupando um dos cargos de maior cobiça pelo prestigio e, obviamente, pela ótima remuneração. O exemplo foi acompanhado por um: “se ele conseguiu porque outras não conseguem? É só uma questão de querer” (sic). Esta afirmação põem por terra a desigualdade histórica entre brancos e negros, considera que todos têm as mesmas oportunidades e propõem que o insucesso é fruto da preguiça e da acomodação. Parece que alienamos o sujeito do meio social, fazemos dele um boneco de corda que só precisa girar o dispositivo e ele anda sozinho na direção do universo.
Pergunto agora ao caro leitor: se um branco e um negro compram um carro do mesmo modelo, saem juntos em direção ao mesmo local de trabalho, qual chegará primeiro? Resposta: o branco, porque o negro parará na primeira blitz que encontrar no caminho. Escutei certa vez esta estória e acho que faz todo o sentido.
O que estou discutindo aqui não é a possibilidade de um negro chegar a enriquecer ou ser um ministro, porque acredito que a dignidade não é acompanhada da ascensão financeira, quero levantar a lógica da igualdade de racial a partir da garantia da universalidade de acesso aos distintos espaços sociais, educacionais e culturais. Quando falei em outro momento acerca o tempo de implicação[2], não estava pontuando nossa implicação apenas nas questões de garantia de direitos de crianças e adolescentes, estou propondo uma reflexão que perpasse a mobilização para com aquilo que me constitui na distinção com o outro.
Penso que igualdade racial em tempo de implicação é a produção de um cenário composto por brancos discutindo direitos dos negros, se comprometendo em minimizar as desigualdades, semeando grãos de trigo no terreno montanhoso das etnias paradigmáticas, estranhas, belas e gentilmente humanas.






Éllcio Ricardo
Psicólogo 29/08/12


[1] Dados do Observatório da população negra 2009, disponível em: www.observatorionegro.org.br
[2] Artigo: Sinais. Março, 2012. Disponível em: www.sentidospsi.blogspot.com

sexta-feira, 30 de março de 2012

Sinais



Nuvens escuras, céu nublado. Sinais de chuva.
Tristeza profunda, intermitente, idéias suicidas, isolamento social, avolição. Sinais de depressão.
Os sinais apontam a existência de determinados acontecimentos, a febre indica uma possível infecção ou inflamação.
Um sinal configura-se na mundanidade como com o enigma ou imagem que clama por decodificação por que todo sinal quer ser decifrado. Os códigos que inundam nossa visão falam de coisas a serem consumidas, corpos objetos de desejo que devem ser devorados em uma animalidade sagaz e perfídica.
A linguagem subliminar do individualismo legal que nos habilita a passar uns pelos outros e não fazer qualquer leitura acerca dos sinais de sofrimento ou felicidade, tristeza ou alegria, ansiedade ou calmaria, legitima a indiferença e nos distancia da condição mais primitiva do homem, a sua humanidade.
Antes de inventar a roda, o homem era homem, antes dos castelos ou das armaduras de cavaleiros, antes dos carros ou dos aviões a condição mais ontológica do homem era e sempre foi sua própria humanidade. Sei que inseridos nesta humanidade o ódio, a crueldade ou a apatia são sentimentos que acompanham e fazem parte do humano, porém quero dialogar acerca do lugar que indiferença tem assumido nos dias hodiernos.
Roupas de animais, rostos pintados como circenses no picadeiro das ruas inquietas, perucas de palhaços espantados, fisionomias assustadas, sapatilhas que não cabem nos pés, mas são arrastadas todas as vezes que é preciso sair da calçada para ganhar as ruas na faixa listrada da avenida. Faixa esta que os pedestres deveriam utilizar para atravessar de um canto a outro, porém as crianças estão lá, paradas. Estacionadas no palco da vida porque o sinal ficou vermelho.
São crianças invisíveis prostradas nos sinais de trânsito. Será que o rubro não sinaliza que deveremos parar para pensar nestas crianças anônimas?  Visto que, o que aparece é a faixa que sustentam com os ombros caídos e o corpo esguio, de alguma loja que fatura milhares com a colaboração dos que lêem os dizeres, conseguem decodificar os sinais do letreiro, mas não enxergam quaisquer sinais que estas crianças enviam. São sinais que falam de si, que me aturdiram de modo tão intenso, porque não sei o que falam, o que revelam. São sinais que aparecem em meio a invisibilidade do humano que estão lá a vista de todos, mas imperceptível. Isto causa uma confusão porque a racionalidade não dar conta deste fenômeno, muito menos o sentimentalismo romântico da compaixão. Difícil nomear porque parece que um não lugar também me invadiu.
Crianças segurando faixas de promoção de lojas, expostas aos mais sérios riscos, ao atropelamento, a desidratação, e principalmente ao assujeitamento na estigmatizarão de uma exclusão disfarçada de valores de dignidade, porque “é melhor trabalhar do que ficar por ai fazendo coisa errada”. Exploradas em sua vulnerabilidade, esta é pior desculpa dos que querem sustentar que crianças e adolescentes pobres só têm duas opções, trabalhar para ser gente, ou roubar e ter seu futuro marcado pela bandidagem.
Acho que é preciso pensar em um “tempo da implicação”. Este tempo configura-se na emergência da implicação na leitura dos sinais que inundam a vista da indiferença, marcando o surgimento de um novo laço social que modifique as dinâmicas estáticas da afetividade humana.
O transito continuou, o sinal verde acendeu, indicando que era hora de sair da rua e ir para a calçada, quando o vermelho acendia, hora de voltar com a faixa, sinais estes facilmente compreendido por todos. Sinais visíveis, invisíveis sinais.
Eram quase seis horas, início da noite, depois de um dia de trabalho eu fui para casa e elas continuaram nos sinais segurando a aquela mesma faixa, eu me senti péssimo. Fiquei pensando: tudo que queria era ir para casa descansar e imagino que elas também. Caso não tenham casa acho que queriam ao menos pender o rosto cansado sobre qualquer superfície que pudesse atender aqueles sinais.
Éllcio Ricardo – 30/03/12
 Psicólogo