Estava certo
dia em uma unidade de saúde da família de um determinado bairro da cidade de
Vitória de Santo Antão e em conversa pouco formal com outros profissionais,
chegamos ao tema da política de cotas que o Brasil vem adotando nos últimos
tempos. A pouco, o congresso aprovou as cotas nas universidades para alunos de
escola pública, porém o que mais me chamou atenção no diálogo foi o quanto
algumas pessoas defendem com tanto ardor seus pontos de vista.
Falamos
acerca da política de cotas para negros e eu vi algumas pessoas brancas
argumentando que deste modo, podemos estar afirmando que os negros são
intelectualmente inferiores ou que, não são capazes de se preparar o suficiente
e passar no vestibular. Fechamos os olhos e não conseguimos enxergar o quanto
os afrodescendentes foram explorados, marginalizados e excluídos dos meios de
acesso a cultura, igualdade de renda, educação e saúde em nosso país.
Apenas para
identificar e não imaginarmos que estou falando de algo pouco concreto os dados
o Observatório da População Negra, afirmam que, negros na faixa etária entre 35
a 64 anos tem uma renda média de R$ 524,00, enquanto a população total ganha R$
762,00, a porcentagem de analfabetismo entre os negros é de 13%, este índice cai
para 10% na população total. A frequência escolar na idade correta dos negros
entre 15 e 17 anos, é de 27% e da população geral, na mesma faixa etária, é de 36%.
Não quero
afirmar que a política de cotas seja a solução para os problemas de desigualdade,
não sei nem se sou a favor das cotas, tenho pouca leitura e participei de
escassas discussões para ter uma opinião definida a este respeito, o que eu sei
é que esta política se propõe a reparar a situação e minimizar a desigualdade
de acesso ao ensino superior no país.
Gostaria de
entrar em outro nível de discussão, a partir de uma pergunta que há muito me
inquieta. Como nós, brancos, podemos
falar com tanta propriedade sobre o que é certo ou errado com relação as lutas
e conquistas civis dos negros em nosso país? Por que se a aprovação das cotas
aconteceu não foi por causa do movimento branco que lutou para que isso fosse
alcançado, aliás, nem existe este movimento, porque não é preciso. Os brancos e
ricos não foram vítimas de nenhuma negligência social historicamente
construída, não precisam que movimentos os representem, porque se perpetuou no
imaginário coletivo a superioridade dos opressores que tem este perfil.
Sobre o
imaginário quero falar do modo com o qual a relação entre negros e brancos
acontece, os preconceitos, as discriminações e outras violações de direto que
envolvem a ordem subjetiva. Subjetividades construídas a partir da invenção do
sangue azul dos nobres, da baixa capacidade de raciocínio e mediocridade de
inteligência dos negros e da animalidade contida na melanina. Antigas
representações sociais que sobrevivem na modernidade. Não pensem que já
conseguimos reparar os danos causados a raça que, juntamente com os índios, mais
contribuiu para que a cultura brasileira fosse tão diversa e contagiante.
Ritmos e comidas, arte e coragem, dignidade e luta não foram os europeus que
nos ensinaram. Atabaques e pandeiro, alfaias e rabeca, heranças incontestes do
enriquecimento cultural para todas as classes, credos e cores. Penso que se os
brancos inventassem tantas possibilidades de sentir e viver com a construção
destes elementos concretos e simbólicos quisessem, talvez, patenteá-los para
garantir o usufruto particular em nome de um separativismo ignóbil.
Então me
pergunto: será que ser contrario a política de cotas para negros não nos
colocaria neste lugar da indiferença sem ao menos considerar toda história
sócio política da população negra no Brasil?
Parece-me que
a política de cotas ameaça os lugares demarcados das carteiras universitárias
que estavam destinadas para os brancos, por antecedência. Talvez este seja o
grande medo, perderem o trono que os faculta privilégios de classe, descerem o
altar do glamour opressor e se misturarem a popularidade do navio negreiro que
queiram ou não continua a navegar.
A conquista de direitos dos negros implica na
divisão de espaços sociais, na legitimação de uma mestiçagem que ainda não
reconhecemos como algo que constitui nossa gente. Os ideais de beleza impostos
por uma ditadura da chapinha fizeram dos cachos, produtos de segunda categoria
gerando a ilusão de pertencimento a uma classe que nunca se identificou com
seus oprimidos.
Fiquei
imaginando, ao participar de um seminário, no qual o palestrante negro expunha dados
sobre acesso à educação, desigualdade de distribuição de renda entre negros e
brancos, condições de saúde e moradia da população negra e ao terminar sua
fala, no momento que se abriu o espaço para perguntas, a plateia, em sua
esmagadora maioria branca, ficou muda, não tinha o que perguntar ou contribuir.
Depois de um tempo pessoas negras levantaram e fizeram suas observações. De
imediato me vem duas impressões, uma mais preocupante do que outra; a primeira é
que as pessoas não entenderam o que foi dito ou a dimensão do que foi exposto;
a segunda, e mais grave, é que os brancos continuam indiferentes ao discurso
emergencial e eloquente da negritude.
Uma pessoa
citou o exemplo do ministro do STJ – Tribunal Superior de Justiça, Joaquim
Barbosa, que é negro e conseguiu se destacar ocupando um dos cargos de maior
cobiça pelo prestigio e, obviamente, pela ótima remuneração. O exemplo foi
acompanhado por um: “se ele conseguiu porque outras não conseguem? É só uma questão
de querer” (sic). Esta afirmação põem por terra a desigualdade histórica entre brancos
e negros, considera que todos têm as mesmas oportunidades e propõem que o
insucesso é fruto da preguiça e da acomodação. Parece que alienamos o sujeito
do meio social, fazemos dele um boneco de corda que só precisa girar o
dispositivo e ele anda sozinho na direção do universo.
Pergunto
agora ao caro leitor: se um branco e um negro compram um carro do mesmo modelo,
saem juntos em direção ao mesmo local de trabalho, qual chegará primeiro?
Resposta: o branco, porque o negro parará na primeira blitz que encontrar no
caminho. Escutei certa vez esta estória e acho que faz todo o sentido.
O que estou
discutindo aqui não é a possibilidade de um negro chegar a enriquecer ou ser um
ministro, porque acredito que a dignidade não é acompanhada da ascensão
financeira, quero levantar a lógica da igualdade de racial a partir da garantia
da universalidade de acesso aos distintos espaços sociais, educacionais e
culturais. Quando falei em outro momento acerca o tempo de implicação,
não estava pontuando nossa implicação apenas nas questões de garantia de
direitos de crianças e adolescentes, estou propondo uma reflexão que perpasse a
mobilização para com aquilo que me constitui na distinção com o outro.
Penso que
igualdade racial em tempo de implicação é a produção de um cenário composto por
brancos discutindo direitos dos negros, se comprometendo em minimizar as
desigualdades, semeando grãos de trigo no terreno montanhoso das etnias
paradigmáticas, estranhas, belas e gentilmente humanas.
Éllcio Ricardo
Psicólogo 29/08/12