Hoje
fui realizar um trabalho no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, dispositivo
de saúde estratégico do modelo de reorientação da Política de Saúde Mental
proposto pela Reforma Psiquiátrica. Cabe aos CAPS o acolhimento
e a atenção as pessoas com transtornos mentais graves e persistentes.
Após
o término do trabalho me deparei com uma cena muito simples, uma lagarta de
pêlo subindo no carro, então resolvi devolvê-la ao ambiente que achei que fosse
mais apropriado, uma árvore rodeada de grama verde. Se tratava de uma lagarta
de fogo verde da família Saturniidae
gênero Automeris, bem não sei se
estas últimas informações mudam alguma coisa ou são tão importantes assim, o
fato é que o único perigo que representam esta relacionado ao contato. Caso
alguém toque em suas cerdas pode sofrer queimaduras pela liberação de toxinas.
Informação básica passada por um profissional de saúde, hehe.
Voltemos
ao caso. Olhei demoradamente para a lagarta antes de deixa-la na árvore,
admirando sua beleza. Ela tinha nas costas uns ramos espetados como espinhos,
esverdeados, brilhantes. Entre o fascínio e a razão decidi fotografar na
tentativa de guardar aquela imagem por mais tempo e poder consultar quando a
vida urbana voltasse a consumir minha realidade. Busquei
o melhor ângulo, mas a foto não ficou boa e eu expressei num gesto balançando a
cabeça. Não sabia eu que estava sendo observado por algumas pessoas
companheiras de trabalho. Ao voltar para o grupo recebi logo um, “num disse que este menino tinha problemas
você não quer ficar no CAPS não? Porque isso não é normal”. Respirei
fundo...
Antes
de questionar o conceito de normalidade para esta pessoa, gostaria de pensar:
se ela disse isso pra mim, que apenas devolvi uma lagarta ao seu habitat, o que
esta profissional não pensa dos sujeitos com esquizofrenia? O que os delírios
não despertam nela? Ao me enquadrar como sujeito que precisa de tratamento
psiquiátrico apenas porque admirei uma lagarta e tive um gesto de aproximação
com o animal ela circunscreve a normalidade dentro de um parâmetro muito
estreito ao meu entender. Qual a visão desta profissional com relação às
pessoas com sofrimento psíquico? O que é normal? Viver aquilo que todo mundo
vive sem questionar os valores e os hábitos que a sociedade impõe? Sem se dar o
direito de olhar um animal, pouco comum e de uma beleza tão singular? Pensar
como alienados consumistas que só conseguimos nos relacionar com carros,
sapatos, roupas e marcas? Fazer dos programas mentais, criados para nos fazer
cada vez mais apáticos, o modelo de normalidade? Deveremos permanecer como
seres domesticados que nunca aprendemos a questionar a realidade? Ou melhor, a
experimentar outras formas de relação com o mundo o com os seres que nos
cercam? Será que não estamos suprimindo e limitando nossa capacidade de sonhar
nosso sonho interior e estamos apenas reproduzindo o sonho exterior de uma
sociedade?
Aprendemos
as coisas e reproduzimos sem a mínima capacidade de questionar. Aprendemos a nos
comportar, em que acreditar, o que é bom o que é mal, bonito, feio, certo,
errado e nunca nos sentimos livres o suficiente para pensar se estas coisas
fazem sentido. Simplesmente introjetamos e pronto! Dom Miguel Ruiz no Livro “Os
quatro compromissos” afirma que muitas coisas que fazemos não fazem parte nas
nossas escolhas, mas nunca paramos para pensar sobre elas, se são nossa
realidade ou não, somente vivemos como se isso fosse a única possibilidade. A única
possibilidade nesta sociedade é trabalhar - de preferência em algo que dê
bastante dinheiro - ter bens materiais, uma família e acumular, ou até mesmo
vestir estas roupas que todo mundo usa. Esse processo foi que ele chamou de
domestificação do sonho. Não acredito que exista forma de domestificação maior
do que o julgamento. Estamos o tempo todo julgando dos outros,
aprendemos que existe uma maneira certa de ver e viver e fazemos dos outros
objetos da irregularidade, baseados na ideia de que eu sou o padrão de comparação.
Não
descobrimos nosso sonho interior e ficamos vagando e aceitando o sonho da
sociedade. Não paramos para descobrir nossa verdade. O delírio não seria a
livre expressão do sonho que outra pessoa não teve a ousadia de sonhar? O que
define que a diferença no modo de sonhar seja aliada ao campo da
psicopatologia? Qual a relação entre a admiração da natureza e a patologia mental?
Na verdade o que caracteriza a psicopatologia é o estreitamento no modo de
pensar e sentir a vida. Não é o delírio que faz a psicopatologia, mas sim o
circunscrição da vida ao delírio, é a ideia que circula e não ganha a proporção
do sonho, da longitudinalidade. Patológico é viver sem sentir a vida, sem
construir um laço de abertura para a diferença, sem descobrir sua própria
verdade.
O
que é a loucura senão o modo de viver aquilo que ninguém tem coragem. Vamos
provar isso? Você teria a coragem de falar pra todas as pessoas que não
concorda com o que elas fazem? Dizer sinceramente que não gosta de uma pessoa
sem ter problemas nenhum com isso? Ser congruente o suficiente para fazer
aquilo que tem vontade? Quantas vezes queremos fazer algo e pensamos: “o que as
pessoas vão pensar”? Tem muita gente olhando? Você comeria pizza com a mão em
um restaurante de “granfino” se tivesse vontade? Não você diria: “estas coisas
se fazem em casa”. Mas quem disse isso? Nos domesticaram e simplesmente
acreditamos nisso, mas nossa vontade é outra. Cabe uma pergunta: porque a
loucura inquieta tanto? Porque nos defendemos o tempo todo dos loucos? Excluímos,
prendemos, jogamos nos manicômios, matamos, violentamos, discriminamos todas as
formas de loucura em todas as épocas. O que ela tem de tão ameaçador? Porque a
tememos tanto? Penso que odiamos e afastamos de nós aquilo que não queremos
reconhecer em nós próprios. Estar aberto para descobrir nossa verdade pode nos
revelar vontades muito loucas, portanto é melhor nos defendermos afastando esta
loucura. Temos tanto medo de nos descobrirmos loucos, por termos aceitado
aquilo que não queríamos, casado com que não amávamos, estudado medicina (ou
qualquer outro curso) sem gostar, apenas porque nossos pais queriam, ficado em
casa quando na verdade queríamos sair, calado quando desejávamos mandar a
pessoa pra PQP, mas não, precisamos ser educados... Mas isso não é educação, é mediocridade.
É
loucura, loucura de não ouvir a voz do coração, a verdade que só nós podemos
acessar. O que tememos é reconhecer que vivemos mais loucos do que sãos, que
nossas escolhas e nosso projeto de vida são tão domesticados, que poucas vezes paramos
para escutar nossa verdade. E a loucura que está em nós precisa ser abafada porque
não é conveniente ser assim “anormal”.
Por
fim deixo a frase de Cervantes,“E um dos indícios pelos quais conjecturaram
que ele morria foi ter-se transformado com tanta facilidade de louco em são”.
Éllcio
Ricardo
30.10.13